Quase todos guardamos dentro de nós uma criança ferida que requer urgentemente a nossa amorosa atenção.
Ela só poderá ser resgatada através do amor e curá-la traz de volta a plenitude e o esplendor da criança divina em cada um de nós.
Carta à minha criança ferida
Vem cá, criança triste, vem ao meu regaço sem receios, pois calei a inquietude para te acolher, doce alma chorosa!
Aninha-te nos meus braços e deixa que beije durante muito tempo esss teus olhos de mel perpassados de melancolia. Fiquemos assim, juntas, atadas no nó deste amoroso abraço, enquanto lá fora tudo cessa de existir. Não há mais ruídos, nem provas, nem gestos de desamor. Nada importa, só tu e eu, meu anjo amado, num acto reparador.
Há muito que nos devíamos ter encontrado, mas a vida é mesmo assim: são precisos, às vezes, todos os desenganos para aprendermos a actuar no ponto mais nevrálgico.
Inspira comigo para que alcance as profundezas do teu ser, lá onde a inocência foi dilacerada. Inspira, amor, inspira...
Apesar das lesões, como és linda na simplicidade natural do teu existir, na expontânea credulidade da tua expressão!
Aquieta-te, amor...
Vá, escuta o sussurro calmante da minha voz e não chores mais que eu te acarinho como uma enorme folha aveludada, protectora como a sombra num dia estival.
Nada podes possuir que em ti não exista já, ninguém te pode levar o que te pertence per natura. Confirmo-te no que és, imutável e eterna.
Nada receies, meu anjo. Os encontros e desencontros, as lealdades e as traições são coisas de superfície e nem sempre representam o que parecem. És infinitamente amada, doce ser, expira comigo para que as dores se soltem, enquanto te aperto contra o meu coração e te asseguro e reconfirmo na tua inteireza.
Tens toda a minha atenção, sou só tua.
Canto agora uma berceuse ... embalo-te, pequenina, volta a ti em mim contigo e sossega. As raivas, os desenganos, o folclore exterior não nos pertencem, não nos devem portanto tocar. Regressemos assim amorosamente ao estádio anterior aos desajustes.
Teço com dedos lunares um casulo de sopro sagrado para que nele te aninhes e retemperes. Vá, meu anjo, inspira comigo para que te alcance nos secretos abismos das tuas dores e expira, amor, expira no meu ritmo para que as feridas sarem.
Embalo-te, pequenina, canto a tua berceuse favorita, aperto-te contra o meu coração a ti que és linda e doce e sem mácula, a ti em cujos olhos de mel me reencontro mais inteira e fortificada.
Agarremos o instante que passa para que o bálsamo perdure.
Meu anjo, meu amor, minha doce pequenina...
MARIANA INVERNO, Notas Diárias à Sombra dos Tempos