ORDEM NASCENTE

Textos poéticos e filosóficos sobre a ordem nascente
A ordem nascente é ainda elusiva e periclitante. São muitos os profetas apocalípticos que auguram o fim dos tempos, e assim alimentam o medo no ser humano, facto que não pode bem servir a humanidade. Mas há, sem dúvida, crescentes indícios, vestígios, sinais que auguram o fim de um tempo, o ruir das estruturas... MARIANA INVERNO

10 fevereiro 2006

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A NOITE ESCURA DA ALMA

Oh noche que me guiaste
Oh noche amable más que el alborada!
Oh noche que juntaste
Amado com amada
amada en el Amado transformada!


Canciones del Alma
SAN JUAN DE LA CRUZ




Pensava hoje, de dentro de um largo espaço interior de meditação e quietude, como o que se passa actualmente a nível tangível nas nossas sociedades ditas civilizadas parece estar desligado de qualquer essência. Nada de matricial e vivo ligado ao subtil superior parece sustentar os actos e as opções da maioria dos seres humanos que hoje povoam a Terra. Contudo, como as realizações da manifestação, por mais questionáveis, se sucedem e multiplicam, hão-de existir outras forças que alimentem o processo. Este é automático, robótico, ligado numa espécie de memória do que um dia esteve para ser. Como o impulso essencial já lá não está, o que aparece à superfície resulta desvirtuado, destituído de alma pois a focagem obsessiva no racionalismo, no mental, subtraíram ao sopro da vida a limpidez que lhe estava destinada.

Assim, os que quiserem reencontrar o sentido profundo da existência e religar-se com o divino, terão de se submeter de uma forma ou doutra (de acordo com a sua lenda pessoal) à solitária travessia a que San Juan de la Cruz chamou a noite escura da alma. Uma espécie de descida aos infernos em que o ser é submetido a provas que não representam mais do que o reencontro com feridas antigas, inscritas no sensível tecido da alma.
Existe no interior de quase todos nós uma zona depressiva correspondente a um enorme vazio que todos sem excepção temos medo de encarar. Sempre que esse confronto se apresenta iminente, equipamo-nos das armas possíveis e de todos os inventáveis disfarces para não receber os contundentes golpes do vazio e não o olhar de frente. Nesse espaço de alerta vermelho, a nossa criatividade pode gerar tudo a grande velocidade: novos caminhos, novas ideias, novos amores, inesperados amigos; explicações elaboradas e/ou simplesmente a ditadura do impulso.
Isto, esta fabricação tem, contudo, de cair. Isto pertence ao reino do ilusório e a verdade, na hora dolorosa, vive tão somente nas nossas lágrimas e no aperto tão grande pois o caminho aparece sem fim e as nossas forças esvaem-se como fumo que parte para não mais voltar.
Falo disto com uma aparente autoridade porque também eu atravesso a minha noite escura da alma.
Tudo está posto em causa, sobretudo eu mesma. No que sou, no que fui e naquilo em que me estou a tornar. No que amei, no que votei ao abandono, no que deixei de ser ou de viver para escapar a essa sombra
ameaçadora que nunca quis afinal ver. Nunca ousei reconhecer-lhe os contornos com nitidez e empurrei-a para um fundo qualquer de mim mesma, na esperança de que se fosse de vez.
Ilusórios passos, tempo perdido…
Aí está! Na mais inesperada curva, adornada com os ingredientes da impossibilidade e do inviável, monstro coberto pelas escamas do desamor e do olvido, rosa negra, rosa espinhosa, austera mãe da minha incontornável iniciação!
Aí está o vazio, em mim ressoam os anti-sons de um vazio incomensurável, onde apenas o próprio Nada se parece inscrever. Ainda teria hipóteses de simular a fuga: espreitam na gigantesca encruzilhada as bandeirolas de opções desviantes, compensações várias, certos números de faz de conta…
Não quero! Já não quero nada que não seja olhar de frente o que me aterra, o que tolda o fulgor do sol na minha vida. Senti-lo. Desmistificá-lo. Retirar-lhe a máscara, expô-lo.

Faz muito frio neste plano que atravesso. Cada alívio esconde novo tormento e choro como nunca, antes. As forças da Vida sussurram-me, porém, apoios inesperados, asseguram-me que por detrás da intolerável aridez habito Eu, inteira, em todo o meu esplendor. Eu religada, eu essência, eu já não mais adiada, Eu LUZ VIVA, actuante.
Choras, dizem, porque o teu coração se abre definitivamente ao amor incondicional, choras por ti e pelos teus irmãos em sofrimento.

Sigo, muito só, pela noite escura. Como guia – tão só o meu coração aberto. É de lá que irrompe a chama que alumia os secretos terrores. Vai alta a hora, mas não pode ser tarde demais, confiarei na noite e a ela entrego o meu ser.
Assumo-te, noite escura, pois em ti vivem sintetizadas as marcas de milénios que esqueci. Guia-me para além de mim! Sê a minha aliança comigo mesma, mostra-me tudo o que nunca quis ver, o que sempre recusei aprender!

Para além de ti, dizem-me, estou Eu mesma e essa a ti sobreviverá.


MARIANA INVERNO, Textos da Travessia
Quadros (1995-1998) de KENNETH B. MILLER

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