Insuportável Frequência

Às vezes, sinto que poderia enlouquecer.
Hoje, por exemplo, achei que Amor seria apenas o que causasse
a alma inteira
desdobrados em poemas
Quando eu morrer, que alguém cante, entre profusões de flores, todos os poemas de amor que escrevi e grite num soluço:
Glória a esta alma poética!
Glória à ingenuidade, entregue nos braços enlevantes da palavra poética, suprema e transcendente!
Por vezes, quase atinjo. Quase…
Quase o princípio e o fim - quase a expansão...
Mas na minh’alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!
Sadismo dos deuses, creio. Brincam com as minhas hélices. Liga, desliga. Liga agora uma. Duas. Desliga outra vez.
Entretanto, estou de cama. Com febre, tosse, o corpo quebrado.
Talvez seja o fim, sussurra a vozinha maldosa da mente obscura a projectar rapidamente imagens apocalípticas, a gripe pode matar, gripe das aves, gente contaminada por entre as multidões anónimas e mimos similares.
E se for? Estará tudo em ordem para os “meus” receberem uns dinheiros e resolverem os seus problemas? Sei lá, nunca se sabe, hoje em dia. Há aquelas letras pequeninas nos contratos dos seguros e dos bancos, letrinhas que ninguém lê e que depois nos tramam.
Tudo é possível. Menos, até agora, a experiência do Amor pleno…
Anda tudo desencontrado, resta-nos o chamado amor incondicional pelos seres humanos todos. E eu pergunto-me: o que é isso? Ninguém me soube ainda definir claramente esse sentimento e ainda menos pôde demonstrar-me a sua prática. Claramente tudo está condicionado por, sujeito a, dependente de… Além disso, não sinto nesta vida vocação para Madre Teresa de Calcutá. Não busco nem me contento com um desfile diário de drogados, esquizofrénicos, traumatizados, complexados, confundidos, aparvalhados ou simplesmente exaltados do chamado Novo Tempo. Vêm invariavelmente sugar a minha vitalidade de que tanto preciso para abrir caminho. A minha primeira responsabilidade é para comigo mesma, em seguida para com o grupo de almas a que pertenço e com o qual a minha tem um projecto comum. Não sou fornecedora de doses de salvação individual, não acredito em processos de fora para dentro.

Sou Luz Viva, dizem os das estrelas. Será…? Se assim fôr…que responsabilidade! Talvez seja por isso, admitindo que é verdade, que eu gosto que seja só o Amor a beijar o meu manto estelar. Talvez seja por isso que não quero compromissos com o faz-de-conta, não subscrevo tretas, acho-me ali onde a voz soa clara – soluçante, é certo – mas límpida e bela como um lírio orvalhado.

Uma vez, um poeta triste e passado, disse-me: Ai de ti, filha do Alto, quando cessarem todos os teus jogos, ver-te-ás cara a cara com a insuportável frequência do teu canto.
Morreu, pouco depois. Pensei, na altura, que fora a droga a falar.
Décadas mais tarde, resta-me lembrar com carinho o profeta.
MARIANA INVERNO, Notas Diárias à Sombra dos Tempos
Cada vez se torna mais claro para mim e para quem quiser ver que as sociedades vivem um processo rápido de declínio e não se apresentam muitas saídas.
A res americana, baseada na pressão contínua até à exaustão e numa óptica de vida que profundamente atraiçoa os direitos fundamentais de todo o ser humano, tem vindo a espalhar os seus tentáculos por todo o planeta. Quase toda a gente vive em escravatura, de um tipo ou doutro. Pois o sinal mais preocupante e que melhor denuncia essa influência na natureza decadente dos nossos tempos reside no facto da maioria das pessoas acreditar que a sua libertação está intimamente ligada com a posse de muito dinheiro.
Parece, neste cenário quase apocalíptico, não haver esperança. Discordo.
Como único ser consciente-reflexivo, dos que conhecemos, o ser humano recebeu da vida o poder e a responsabilidade de tornar-se sujeito deste desenvolvimento como pessoa e como colectividade. Dois factores ontológicos que a vida lhe forneceu para isto são o trabalho e a educação.
