ORDEM NASCENTE

Textos poéticos e filosóficos sobre a ordem nascente
A ordem nascente é ainda elusiva e periclitante. São muitos os profetas apocalípticos que auguram o fim dos tempos, e assim alimentam o medo no ser humano, facto que não pode bem servir a humanidade. Mas há, sem dúvida, crescentes indícios, vestígios, sinais que auguram o fim de um tempo, o ruir das estruturas... MARIANA INVERNO

26 março 2005

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A Voz do PAI


Faz hoje trinta e cinco anos que o meu pai partiu desta dimensão. Foi-se numa quinta-feira de Páscoa, com toda a carga que este periodo tem na nossa cultura. No domingo de Páscoa seguinte, a família almoçou acompanhada já só da sua fotografia no lugar que era o dele à mesa e do atordoamento doloroso causado pela morte recente.
Em cada ano, desde então, vamos nós todos, os irmãos, beijar a mãe neste dia, com um apertozinho disfarçado no coração, já integradas a tristeza e a aceitação do bom e do mau que não chegámos a viver com ele. Também muita gratidão, pela permanência e constância da mãe.

Há um par de anos, estava eu de férias, aconteceu-me algo de estranho relacionado com a memória da sua voz, que me causou grande aflição. E escrevinhei umas coisas para me aliviar. Aí vai...




A VOZ DO PAI



Ontem, aconteceu-me uma coisa estranha.

Sozinha, no amplo quarto alentejano, de grandes janelas envidraçadas a dar para os montes verdes, onde se aprumam poéticas e antigas oliveiras, deixei-me vaguear pelas memórias dos primeiros anos.
A avó, a querida avó, alentejana. O rosto seco e magro, sempre digno, sempre composto, destilando sabedoria, antiga como ela.
A mãe, a dizer NÃO a tudo quanto emane desta terra onde nasceu e conheceu as marcantes dores da iniciação à pobreza e aos acanhados caminhos da restrição quase absoluta.
O pai, o pai belo e ausente, a melancolia sempre a ensombrar-lhe os olhos dourados e distantes, registo de inconfessados tormentos internos, a testa alta e pensativa. Lembro-me muito bem das mãos, as suas longas e brancas mãos, altivamente pousadas com elegância absurda em cenários inadequados. Partiu, há mais de três décadas, com aparato mínimo. Tendo em conta que se suicidou, há que admitir que tudo se passou de forma discreta, como se quisesse que não notassem a sua fuga pela porta lateral. Falou pouco, durante a sua curta vida, nada deixou escrito após a morte. Como de seu também quase nada tinha, a minha herança e a dos meus irmãos resume-se sobretudo às memórias.
E foi a caminhar pelos enganosos troços da memória que me dei conta que já não conseguia escutar, nas recônditas esquinas da lembrança, o timbre da sua voz. Uma voz masculina, a voz do homem original, a que me chamou legitimamente de filha. Rebusquei aflitivamente os registos internos, imaginei coisas. Era uma voz grave. Acho que me lembro disso. Hei-de perguntar ao meu irmão, para ter a certeza. Mas talvez lhe tenha acontecido o mesmo que a mim. Possivelmente, também para ele se esboroou o som dessa voz como poeira levada pelo vento do esquecimento. As mais novas seguramente não se lembram , nem vale a pena perguntar.
Reconstruo cenas, perfilo no écran da memória frases que ele dizia. Nos raros momentos de relaxe, gostava de recitar poesia.
Batem leve, levemente/como quem chama por mim/será chuva, será gente/ gente não é certamente/e a chuva não bate assim.
Parece que o oiço, mas não, afinal era só a minha voz entremeada com um arremesso de lágrimas.
Mais raramente ainda, trauteava um ou outro cantar alentejano. Acho que o fazia em tom baixo, inseguro das suas próprias capacidades vocais. Mas não tenho a certeza, não consigo ouvir nada. Vejo os lábios dele moverem-se, o espaço entre os dentes que herdei igualzinho, o cabelo já grisalho apesar da pouca idade. Mas como posso ver, se não oiço, se o som é percebido antes da forma, no máximo em simultâneo...?

Assalta-me uma grande inquietação. Lá se foi de vez o pai, sem memória não somos nada, disse alguém.

Trata-se, no entanto, e apenas, da minha memória pessoal neste dado momento.
Tenho de me lembrar disso. Se ele me aparecer em sonhos, se ele me chamar, estou segura que reconhecerei aquilo de que me não lembro agora. Digamos que a voz do pai, uma inapreensível subtileza, entrou no arquivo morto, como se se tivesse tornado inútil na condução dos dias.
Em verdade, não deveria fazer falta. Para que pode servir a voz de um morto, ou melhor, o nosso registo interno da memória de uma voz que, ao vivo, nunca mais se fará ouvir?


Não sei, acabam por ser tudo especulações. Para ser sincera, torna-se triste, sabe a perda, o eu não me lembrar desse som, dessa voz que umas poucas vezes me chamou de “princesa” e muitas mais me recriminou. Gostava de a ter podido reter no luminoso vale dos meus tesouros escondidos e ouvi-la, a meu grado, recitar de vez em quando.
Batem leve, levemente/como quem chama por mim...



MARIANA INVERNO, Notas Diárias à Sombra dos Tempos

6 Comments:

At 3:19 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Muito bonito..comovente este teu texto..Beijinhos Mariana..e apesar de tudo..Boa Páscoa.

 
At 9:38 da tarde, Blogger mariana said...

Obrigado, Joana, pelas tuas palavras e por teres passado por aqui.
Este é sempre um tempo de memória melancólica, memória do tempo em que o pai se foi e acabou abruptamente o período inicial das nossas vidas, a família completa, as festas sazonais, o orçamento familiar relativamente adequado, etc, etc...
É mesmo assim a vida, e é mesmo assim o mistério da morte. Ambas nos pertencem e caminham lado a lado connosco, todos os dias.
Um abraço carinhoso e Boa Páscoa!
Mariana

 
At 5:20 da manhã, Anonymous Anónimo said...

Mariana.
Madrugada... falta-me o sono... e estou visitando meus garimpos.
Quanta saudade senti do meu pai lendo seu texto! Lindo! E é verdade, tudo vai se acabando, a família completa, as reuniões alegres e festivas, etc, etc...
Uma Boa Páscoa pra voce.
Beijinhos.
Myrian

 
At 2:22 da tarde, Blogger mariana said...

Querida Yriana,
É verdade, tudo aquilo que conhecemos desde que abrimos os olhos e nos moldou tem o seu tempo de duração e vai-se extinguindo aos poucos. Acho importante guardar com carinho as memórias. como é de igual importância que saibamos gerar novos contextos com novos personagens. Raramente algo vem a ter no ser a força marcante do que nos acontece nos primeiros tempos de vida, mas se estivermos atentos ao nosso desenvolvimento espiritual e trabalharmos em nós mesmos todos os dias, a Vida vai-nos presenteando com o inesperado...
Muito carinho para si e bem haja pela visita!
Mariana

 
At 2:23 da tarde, Blogger mariana said...

Querida Yriana,
É verdade, tudo aquilo que conhecemos desde que abrimos os olhos e nos moldou tem o seu tempo de duração e vai-se extinguindo aos poucos. Acho importante guardar com carinho as memórias. como é de igual importância que saibamos gerar novos contextos com novos personagens. Raramente algo vem a ter no ser a força marcante do que nos acontece nos primeiros tempos de vida, mas se estivermos atentos ao nosso desenvolvimento espiritual e trabalharmos em nós mesmos todos os dias, a Vida vai-nos presenteando com o inesperado...
Muito carinho para si e bem haja pela visita!
Mariana

 
At 2:23 da tarde, Blogger mariana said...

Querida Yriana,
É verdade, tudo aquilo que conhecemos desde que abrimos os olhos e nos moldou tem o seu tempo de duração e vai-se extinguindo aos poucos. Acho importante guardar com carinho as memórias. como é de igual importância que saibamos gerar novos contextos com novos personagens. Raramente algo vem a ter no ser a força marcante do que nos acontece nos primeiros tempos de vida, mas se estivermos atentos ao nosso desenvolvimento espiritual e trabalharmos em nós mesmos todos os dias, a Vida vai-nos presenteando com o inesperado...
Muito carinho para si e bem haja pela visita!
Mariana

 

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