ORDEM NASCENTE

Textos poéticos e filosóficos sobre a ordem nascente
A ordem nascente é ainda elusiva e periclitante. São muitos os profetas apocalípticos que auguram o fim dos tempos, e assim alimentam o medo no ser humano, facto que não pode bem servir a humanidade. Mas há, sem dúvida, crescentes indícios, vestígios, sinais que auguram o fim de um tempo, o ruir das estruturas... MARIANA INVERNO

06 março 2005

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UM LIVRO ABERTO

Conhecemo-nos na faculdade, há mais de três décadas, e continuámos a encontrar-nos ocasionalmente para, como costumamos dizer entre nós, pôr a escrita em dia.
Manteve sempre aquele ar brejeiro, mesmo depois das rugas terem feito o inevitável aparecimento. Anteontem, num dos nossos encontros regulares num café do Chiado, achei-a estranha, de rosto crispado, os nervos à flor da pele.


Não aguento, percebes? Não aguento. Isto vai contra tudo o que eu sou, contra os meus princípios, a minha prática de vida. MENTIU-ME! A mim, que sempre lhe contei tudo, todos os detalhes, as minhas histórias mais íntimas...Pu-la sempre a par de tudo!
Tu sabes que eu sou uma pessoa límpida, a minha vida é um livro aberto.
Mas a sacana guardou este segredo a vida inteira e, ainda por cima, eu vim a saber de tudo por vias e travessas. Não aguento, não aguento!

Referia-se à melhor amiga com quem partilhava tudo desde a meninice. Casaram no mesmo dia, porque “era giro duas noivas amigas fazerem a festa em conjunto”. As famílias passam férias juntas e juntas vão as duas ao cabeleireiro, ao cinema, ao restaurante. Cresceram juntas e vão envelhecendo a par. Na posse da vida uma da outra. Livros abertos, uma para a outra. E eis senão quando uma descobre que a outra guardou para si só uma página da sua vida, não a confessou como faz com tudo o resto, por razões que em verdade só a ela dizem respeito.
A minha antiga colega de faculdade continuou o seu discurso entre irada e ressentida, enquanto ia mastigando nervosamente pedacinhos de croissant e deixava no ar a crescente ameaça de pôr fim a um relacionamento de meio século.
Lá lhe fui dizendo, sem muito sucesso, umas quantas coisas: que se acalmasse, que tentasse ver as coisas doutro ângulo, que guardar para nós mesmos o que se sente ser só nosso não é mentir. Omissão, quando muito. E coisas do género.
Em vão, persistiram as sombras do ressentimento. Acabei por me afastar interiormente, a partir de certo momento como que deixei de a ouvir, tão ilegítima me aparecia a sua reacção.
Sempre me incomodou esta atitude nas pessoas. E há tantas que reagem assim! Dir-se-ia que precisam de estar na posse do próprio respirar de quem lhes é íntimo para se sentirem seguros nessa mesma intimidade. O recíproco também é verdadeiro. Para a maioria da humanidade, é indispensável contar a alguém, revelar o que lhes vai na alma para se livrarem do peso, muitas vezes da angústia. E a roda da via segue, no controle compulsivo uns dos outros.
Não sinto assim. E, consequentemente, não faço nem deixo que me façam assim. Respeito em demasia o espaço interior dos outros e galgar a vedação protectora dos seus segredos não me motiva.

Se o falarmos voluntariamente com alguém sobre assuntos íntimos nos pode trazer, por momentos, algum alívio (e mais tarde, em certos casos, muitas complicações, pois a maioria das pessoas não está preparada para receber com respeito os nossos segredos), também é verdade que se formos capazes de, consciente e corajosamente, preservar do conhecimento de terceiros certas áreas interiores, o nosso poder pessoal e autonomia crescem.

Guardar a excelência do sagrado, viver com ela, aumenta a nossa própria excelência. E contribui de forma notável para a boa saúde da economia espiritual ao não “dar pérolas a porcos”.


MARIANA INVERNO, Notas Diárias à Sombra dos Tempos

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