VENEZA
Ir a Veneza é o sonho de muita gente!
A nossa cultura criou o mito romântico da antiga cidade mercantil como o recanto por excelência para o amor e a nação italiana explora hoje de todos os modos possíveis aquilo que é, materialmente, uma mina de ouro.
Acabo de estar em Veneza. Hospedada no Danieli, um hotel emblemático da cidade, instalado num palácio do séc.XV. Da janela do meu quarto abria-se, sob uma luz incomparável, a baía de São Marco e o Canal Grande com a Basilica de San Giorgio Maggiore ao fundo.
Pois, apesar dessa luz, apesar da inegável beleza da traça dos muitos palazzos perfilados ao longo do Canal, apesar dos poéticos recantos nas praças interiores e da elegância das gôndolas deslizantes como por encanto sobre as águas calmas, apesar dos quinze séculos de história e do refinadíssimo bom gosto italiano a espreitar por todo o lado, apesar das maschere em papier-maché dignas de um cenário de luxo, apesar de Tintoretto, Veronese, Vivaldi, Carpaccio e Marco Polo, Giorgione, Da Vinci e Lombardo e todos os ilustres visitantes como Byron, Ruskin e Thomas Mann que, ao longo do tempo a cantaram, Veneza já não tocou favoravelmente a minha consciência de hoje.
Vi demasiada pilhagem legitimizada (deve ser a cidade mais cara do mundo!), senti que a energia da indústria do turismo perpassa tudo e todos e que, para o amor, são criados cenários, recantos e ambiência próprios, vendidos ao peso de muitos euros. (Tudo tão caro que, se o amor nâo existe, terá de emergir à força nem que seja para justificar o investimento!)
Cheira mal em Veneza. Até mesmo no luxuosíssimo Danieli ! Mal abria a porta do quarto, uma baforada de cheiro a esgoto avançava incongruente pelos elegantes corredores decorados com finíssimas peças de mobiliário antigo e valiosos lustres de Murano. Na Piazza de San Marco tive dificuldade em visualizar a beleza de momentos como o imortalizado no sumptuoso quadro de Bellini (a) pois, como em quase todos os templos do mundo nestes dias de afluxos turísticos sem precedentes, não é mais do que um local de passagem de turistas raramente bem informados sobre o que estão a ver mas que sentem precisar de incluir a visita no seu “currículo” pessoal.
Senti-me mal no Palácio do Doge, reminiscente para mim de clausura, grande peso, prisão dourada, intriga política, convenção e rigidez.
As Galllerie dell’Accademia e a profusão de pinturas sacras entediaram-me.
Tive muita dificuldade em encontrar livrarias e desgostou-me a expressão meio avelhacada (própria de quem calcula constantemente) no olhar de quase todos os criados e prestadores de serviços.
Abominei a forma como as autoridades locais permitem que os múltiplos estaminés de “souvenirs” (vendem todos a mesma coisa – maschere, âmbar e vidro de Murano) tapem a vista da baía com o seu aberrante colorido de mercadorias.
Apiedei-me do pittore que me vendeu uma aguarela pois, como todos os seus colegas, pinta a metro uma Veneza de cartão postal.
Finalmente, na Italia da boa cozinha comi mal e paguei escandalosamente caros a pasta, os panini e os capucinos que ingeri; o que é mais, tiritei de frio pois o clima está particularmente rigoroso este inverno.
Veneza é arquitectonicamente interessante, desfruta de uma posição geográfica ímpar e constitui uma atracção curiosa pela forma como nela se vive (se viveu, sobretudo), tendo canais por ruas e barcos por meio de transporte. O autocarro é o vaporetto, extremamente desfrutável ao mover-se pelas águas calmamente, de cais em cais (estações): San Zaccharia/Pietà, Salute, Santa Maria del Giglio, Rialto, Piazzale Roma...
Mas Veneza é um monumento ao poder exterior, um lugar sem alma.
Como se os genes dos mercadores que nela e através dela enriqueceram no passado, vivessem naqueles que hoje a prostituem para garantir o lucro material como único e máximo objectivo. É possível que haja uma outra vida em Veneza para além do “beaten track”, em lugares e praças mais escondidos, entre grupos cúmplices e afins unidos por projectos culturais ou outros, com um conhecimento e uma prática de vida na cidade que não serão nunca os de uma turista ocasional como eu!
A vibração energética da cidade é muito baixa e não me surpreenderia que, com a elevação da consciência colectiva, com o advento de um Mundo Novo e uma Nova Ordem, venha a ser um dos muitos locais que se afundarão.
Previsivelmente a bem de um mundo renovado nas suas referências e habitado por humanos multisensoriais!
MARIANA INVERNO, Notas Diárias à Sombra dos Tempos
(a) A Procissão na Praça de São Marcos (séc.XV)
0 Comments:
Enviar um comentário
<< Home