ORDEM NASCENTE

Textos poéticos e filosóficos sobre a ordem nascente
A ordem nascente é ainda elusiva e periclitante. São muitos os profetas apocalípticos que auguram o fim dos tempos, e assim alimentam o medo no ser humano, facto que não pode bem servir a humanidade. Mas há, sem dúvida, crescentes indícios, vestígios, sinais que auguram o fim de um tempo, o ruir das estruturas... MARIANA INVERNO

13 fevereiro 2005

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A outra

Pronto, já cá está. Instalou-se a tristeza com o seu sombrio véu de silêncio.
Espécie de viúva elegante à moda antiga, cerra-me os lábios, contraído o rosto, e manda-me seguir em frente não obstante a dor. Caminho direita na manhã fria de Londres. Sinto-me encapsulada nalguma coisa que anestesia o pior e que me permite andar em frente, olhar com agrado mudo o perfil sóbrio e elegante dos edifícios de Chelsea e contar rapidamente as minhas bençâos.



Há ainda pouca gente a esta hora da manhã e demoro-me na contemplação dos braços negros e tentaculares das árvores contra o céu plúmbeo a anunciar chuva. Uma rajada de vento mais forte lança um frio cortante por entre a pele entreaberta do meu casacão e estremeço.

(Por onde andarás, meu doce sonho, meu doce e perdido sonho? Perdido, sim, pois só em memórias cada vez mais questionáveis te revejo. Acabam por ser o único registo suportável das nossas inventadas projecções...)

Por sobre as árvores, flutua a outra dentro de mim, o véu esvoaçante, ligeiramente inclinada como um bambú resistente, afilada e estreita, a auscultar os ares por cima de nós.
Como saber se é agora ou depois que os passos fazem sentido? Como saber se eles têm de ser dados ou se se deve deixar a vida vir com as suas soluções naturais ao nosso encontro? Tudo está sempre em marcha, mesmo que nada se faça, são tantos os factores, as variáveis, os inexcrutáveis desígnios...
Hoje, a ordem do dia é nada reter, tudo expurgar. Como se a vida fosse uma retrete aberta vinte e quatro horas para benefício exclusivo do indivíduo centrado em si que se espera que cada um de nós seja para alcançar a felicidade. Cortar, eradicar, rebentar, pôr tudo em pratos limpos, passar para outra. Humm, não creio, não pode ser tão simples.
É certo que, passado o pior momento - o do hermético silêncio, o da paragem forçada de algo dentro de mim para não quebrar - me saberia bem o braço amigo de alguém com quem pudesse desabafar, chorar sem lágrimas, alguém íntimo que me ajudasse a exorcisar o pesadelo e reentrar mais docemente no vaivém dos dias. Tudo sem análises exacerbadas que acabam sempre por ser um mero exercício racional e falho, quando o que aqui se mistura são mundos e mundos subliminares, résteas de sonhos, uns gorados outros na forja, ecos de outras partidas, alguma desistência, laivos de medo...
Por isso a outra me guarda, como tia velha estruturada e sábia, conhecedora dos códigos secretos da vida. Permite-me os devaneios e a prosa desmiolada, consente-me a passeata na friagem da manhã para que gaste a energia febril, ausenta-me de mim para que eu permaneça.
Devo permanecer, ainda. Não redescobri suficientemente o coração da vida, não me fixei como quereria nos momentos misteriosos em que a alma dos pássaros canta em uníssono com a pulsação do universo. Não escrevi, por ora, todas as palavras inscritas nos meus átomos, dançantes no meu sangue. Não sei dizer ainda quem sou.


(Por onde andarão agora todas as almas que amei, as que um dia o bafejo quente da minha acariciou como sol de inverno reconfortante, logo tornado indispensável? E a memória do instante mágico em que a energia do amor passou, miraculosa, a provar o impossível?)


Em frente. Força.
Segue o compasso certeiro dos teus passos.
(Não permitirei que quebres!).
Sigo, sigo...
É melhor não perguntar o caminho a ninguém pois, como disse um velho sábio, assim não corro o risco de me perder.


MARIANA INVERNO, Notas Diárias à Sombra dos Tempos

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