Ao nível da alma
Na complexa interacção das personalidades encontramos pistas valiosas para a nossa evolução, se soubermos ver para além do instante difícil do desencontro: aquele em que, por mais nobre e caloroso que seja o sentimento que une as pessoas, o conflito ameaça instalar-se e causar distanciamento entre as almas. Almas que, na busca umas das outras – através de aspectos fragmentados de si mesmas – buscam o bálsamo para a cura dos seus males por via do enredo das personalidades.
Há dias, alguém chamou a minha atenção para o facto de eu ser sempre uma pessoa muito cuidada, maquilhada, penteada, adornada (o que na realidade só sou por comparação com o desalinho e desarranjo que hoje em dia as gentes ostentam, como se de um troféu se tratasse).
Na opinião dessa pessoa, eu pareço pouco natural.
Fiquei a pensar, meio ressentida, como esse complemento da manifestação, que é a forma como nos apresentamos perante o mundo, resulta de vários factores de entre os quais há a destacar a imensa pressão que o mundo da moda e a tendência das massas para viver e funcionar em rebanho exercem sobre o indivíduo.
Na altura, estranhei a interpelação. Senti até tristeza pelo facto de a pessoa em questão me ser próxima e dizer não gostar (ou não sentir identidade) com o que a minha aparência física emite, apesar do elo profundo que sente com a minha alma. Depois, procurei distanciar-me do assunto em termos pessoais e cheguei a várias conclusões.
· Num diálogo, ninguém é “inocente”. Quem “ataca” e quem se “defende” procura justificar impulsos, teses pessoais, vulnerabilidades e fraquezas, cargas que a personalidade transporta e de que a alma busca libertar-se.
· A naturalidade é, como todos os conceitos, relativa. Só de dentro do ser ela pode emanar, viva e genuina, e não são os trapos e os adereços que a coibem, se realmente estiver presente no ser.
· Actualmente, muita da chamada “aparência natural” não representa mais do que a) sentido de rebanho, b) perda de referências, c) preguiça e/ou falta de asseio, d) tentativa de, a todo o custo, apresentar uma auréola de santidade/naturalidade/esquerdismo/modismo/pseudo-simplicidade e outras coisas afins.
A naturalidade torna-se, portanto, e contra natura, fabricada.
· Se todo o ser humano fosse verdadeiro para consigo mesmo, se se conseguisse subtrair à tirania das modas e conceitos prevalentes do que parece bem e parece mal, teriamos um mundo bem mais colorido e interessante! Sempre me atraíram os excêntricos genuinos (há muitos falsos); são como uma rajada de ar fresco num mundo empestado pela normose.
· Gosto da cor, de tecidos belos e de textura acariciante do corpo, agradam-me os adornos algo dramáticos e certos perfumes. Gosto de experimentar diferentes maquilhagens no meu rosto. Cada estado de espírito e cada situação me sugerem uma apresentação exterior que estou longe de conseguir por falta de tempo, meios e circunstâncias restritivas de toda a ordem. Se gosto, se me sinto bem na tentativa de me corresponder, isso valida a minha escolha de apresentação.
· Os motivos porque aquela pessoa me interpelou neste sentido podem ser muito mais complexos do que pareça à primeira vista; aqueles porque reagi vigorosamente ao seu comentário, idem idem, aspas aspas.
· Apesar de muitos já sabermos que a personalidade e o corpo físico são veículos efémeros e que só a alma pertence à eternidade, todos gostamos de nos sentir amados na nossa imperfeita manifestação física do agora e acabamos por nos ressentir quando criticados por quem é importante para nós.
· Aprovar ou criticar a aparência de outrém implica julgamento, que é próprio da personalidade.
· Os trapos, a maquilhagem e os adereços só emitem aquilo de que nós os imbuimos – as características do nosso veículo físico que os ostenta e a nossa naturalidade ou a falta dela.
Pretendi com esta reflexão tomar consciência das emoções mais ou menos desconhecidas presentes por detrás da acção e da reacção dos dois agentes deste episódio.
Importante, importante parece-me ser a nossa reverência perante o que outro é/aparenta ser.
Amor, amor é aceitar sem descriminação nem julgamento os sinais que o outro emite, sejam eles quais forem. Sem julgamento, portanto sem incompatibilização.
A identidade só existe verdadeiramente ao nível da alma.
Assim, continuarei a enfeitar-me enquanto de enfeites a personalidade precisar para uma manifestação mais coerente. Viva. Sem receios de ser reprovada.
Afinal, o que me interessa acima de tudo é experienciar o Amor e esse só existe mesmo a nível da alma!
MARIANA INVERNO, Notas Diárias à Sombra dos Tempos
1º Quadro: Elegância, ALFREDO ZALCE(1908-2003)
2º Quadro: Flores da Elegância, LEE BOGLE
2 Comments:
Dos excêntricos aos naturais desde que verdadeiro, cada pessoa adorna seu corpo fisico como se sentir melhor, envio meu abraço colorido lena
Exacto, minha amiga, obrigado por aparecer na ORDEM NASCENTE.
Esta é uma questão sobre a qual muito tenho reflectido, pois sinto uma antipatia natural pelo "complexo de rebanho" muito presente nas pessoas que buscam a toda a força identificar-se com determinado grupo social (em geral "gente bem ou queque"), através da sua aparência. Que buscam "não dar nas vistas" mas ter uma "aparência distinta", que querem parecer finas, da Lapa, de Cascais, das "tias". Ou então, bucam uma aparência intelectual ou artística ou excêntrica.
Sempre que isto se consiga à força, ou seja, que não esteja em absoluta sintonia com o impulso interior do ser, é uma fraude. E a aparência das gentes é, lamento dizê-lo, em geral, fraudulenta.
Um abraço colorido e caloroso para si
Mariana
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