ORDEM NASCENTE

Textos poéticos e filosóficos sobre a ordem nascente
A ordem nascente é ainda elusiva e periclitante. São muitos os profetas apocalípticos que auguram o fim dos tempos, e assim alimentam o medo no ser humano, facto que não pode bem servir a humanidade. Mas há, sem dúvida, crescentes indícios, vestígios, sinais que auguram o fim de um tempo, o ruir das estruturas... MARIANA INVERNO

13 agosto 2004

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PARECER E SER

Anoitecia com aquela cálida doçura própria do verão alentejano, na hora do recolher de um dia tórrido. Haviamos decidido jantar no terraço de um restaurante em Monsaraz onde o Bill se costuma deleitar com ensopado de borrego. Ainda era cedo e como este ano há menos turistas, o espaço foi inicialmente quase só nosso, o azul profundo do Alqueva a refrescar em silêncio e na distância a misteriosa serenidade da planície alentejana.
O restaurante é dirigido pelo sogro e servido pelo genro, um homem de olhos doces e perna leve que, como por artes mágicas, consegue atender com relativa rapidez as para cima de vinte mesas do local.
Estávamos no melão, que sempre comemos como entrada, quando chegaram três novos personagens. Até então, para além de nós apenas dois casais franceses, jovens e discretos, jantavam entregues a si mesmos, enquanto a noite baixava devagarinho empastando os contornos das coisas, chegado o momento em que parece que as almas se querem abrir a alguma coiSa, talvez na ânsia do que não foi dito e que nunca se alcança.
Os recém-chegados eram obviamente pessoas de fora, um casal de amantes de verão – ele, citadino e morenaço, jeans à la mode, a chave do carro de desporto a tilintar atrevidamente, dependurada dos dedos indolentes; ela, alta e estrangeira (talvez inglesa), os peitos e as nádegas volumosos bem acentuados pelo vestido branco semi-transparente, longa cabeleira loura, arrogante perfil aquilino. O terceiro personagem, uma espécie de pendura, insípido e novinho, também português e incaracterístico ria-se idioticamente, sabe-se lá de quê. Invadiram tudo à sua passagem. O sotaque tipicamente português do morenaço a tentar falar o idioma de Shakespeare, cortava o ar em tom muito alto compatível aliàs com a oitava em que se expressava a companheira, numa conversa tão interessante quanto impossível de reter.
Tudo bem, até aqui. Há muita fauna desta por aí fora. Já se não estranha.
O que prendeu de repente a nossa atenção foi ver o nosso criado, uma criatura gentil e hospitaleira, subitamente envolvido numa violenta discussão com o morenaço. Parece que o argumento girava à volta de uma mesa que os clientes queriam aqui e que o criado achava que devia permanecer acolá. A estrangeira metia a colher, But what does he want? What’s the fuss all about? Let’s do it! E encostava-se ostensivamente ao beiral do varandim, de traseiro insolente espetado na nossa direcção, aparentemente alheada da má impressão causada, pelo menos no nosso caso.
Fútil o pretexto. Como fútil e gratuito é quase tudo o que se passa à superfície da vida. Na realidade, aqueles dois não se altercaram por causa de uma mesa. O embate de energias tão díspares foi o grande responsável.
O nosso criado é um filho da terra, trabalhador, não brinca em serviço. É genuino, ensinaram-lhe com solenidade certas coisas em pequeno, umas boas outras menos boas. Detém uma certa dignidade, lida com os outros com o respeito que lhe parecem merecer, não percebe nada de artifícios. Trabalha com afinco no restaurante do sogro que tem cara de quem não se deixa enganar facilmente.
O morenaço de Lisboa é produto da exaltação das aparências. Aspira com certeza a fazer parte de algum jet set, por mais medíocre que o mesmo possa ser, exibe tiques da moda, um ar meio negligé e ensonado, acessórios de marca a espreitarem de diferentes zonas do veículo físico. Tem namorada estrangeira com quem dialoga em inglês e em voz alta para português ver. Não sei se é rico, suponho que não, faz tudo porém para que o considerem como tal. Discutiu com o criado, mas acabou por se calar. E, bem vista a aparência das coisas, até era capaz de ter razão. Acobardou-se, porém.
Nesta instância, não defendo nem um nem outro dos personagens. Limito-me a testemunhar aquilo que os olhos vêm e a especular sobre o que não vêm. Assim é a vida. Passa diante de nós, falseada a nossa percepção pelos códigos morais e de bons costumes que a civilização nos forneceu.
Parece-me que há muita distorção, muito tempo e energia perdidos na forma como pensamos e actuamos. Esquecemo-nos de sentir! A mente racional e lógica ocupa demasiado espaço nas nossas vidas.
Urgente religarmo-nos ao sentimento. E tentar perceber o que é quê, e quem é quem, no emaranhado da existência.


MARIANA INVERNO, Notas Diárias à Sombra dos Tempos
Quadro: Edvard Munch, 1896

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