A MINHA OBRA
Tenho andado hoje a pensar na minha obra. Aquela a que devo dedicar-me prioritariamente, segundo alguém me disse. Andas a promover a obra dos outros e ainda não te concentraste na tua. Não tens obra feita, como podes dirigir um PROJECTO que se centra no princípio da criatividade?!
Alguma coisa me soou errado nessas palavras, mas nada disse. Saí para a tarde excepcionalmente luminosa de Londres, embora um pouco fresca. Havia ainda muita luz e caminhei com agrado por entre os edifícios de estilo e os jardins dos largos resguardados, a pensar na minha obra.
O que é a obra de uma pessoa? Aquilo que deixa feito, certamente. Nesse sentido, todos deixam uma obra. Bem ou mal feita, a obra da vida de cada um é um facto inegável. Entre 1940 e 1998, de 1923 a 2001 ou de 1899 a 1987, como a minha avó Mariana. Dois grupos de digitos delimitam o espaço temporal em que se situa a “obra” de cada um. Penso no meu caso: 1950 - ?. É engraçado pensar que virei um século e um milénio e que ali em vez do ponto de interrogação vai figurar uma data que, por ora, está no segredo dos deuses. Tanto pode ser 2005, como 2025 e até, quem sabe, 2050 (seria uma grande partida da vida o vir a ser centenária, não quero mesmo). Ou qualquer outra data, sobre a qual a única certeza é a de que o primeiro algarismo será 2. Nessa data, sobre a qual hoje só se pode especular, terei completado a obra da minha vida. E o que será, afinal, essa obra?
Uns poucos/muitos livros que tenha conseguido escrever, com os quais tenha eventualmente ganho algum prémio ou alcançado notoriedade entre os leitores?
Ou outra coisa muito mais abarcante (e que inclua eventualmente os livros) mas que tenha a ver com a minha actuação como ser humano criativo por todos os recantos e trilhos por onde passei?
Disse-me alguém que não tenho obra. Engana-se. Ai isso é que tenho! Quando comecei a tomar consciência de mim mesma, encontrei-me entre gente muito diferente de mim, mas que eram aqueles a quem chamava “os meus”. Eu que me lembrava de espaços vastos e de uma beleza exímia, de recursos sem fim, tive de recriar tudo a partir do feio e do nada, ou quase nada. Fui gradualmente percebendo, no meu esforço pessoal de transcender circunstâncias pouco agradáveis, que é da capacidade criadora e transmutadora do espírito, interpretado pela persona, que tudo nasce, que a obra nasce.
E a obra não pode ser quantificada pelas palavras escritas ou as pinceladas dadas.
A obra são todas as palavras proferidas ou assentes no momento certo, todos os gestos de amor, compaixão, firmeza, todos os actos inovadores.
A obra são as escolhas coerentes e a coragem de as assumir.
São a memória dos seres a quem abracei com o coração, lembrando-lhe a sua origem divina.
Os filhos que gerei, num estádio de adoração pela vida e pelo espírito na matéria incarnado.
Todas as ajudas que proporcionei aos outros e, com isso, ter sido possível manter sonhos alheios, que doutra forma teriam ruído.A obra tem sido saber como fazer quando tudo parece ruir, e renascer das cinzas como a fénix solar, que re-emerge em cada manhã, dos mundos subterrâneos.
A obra tenho vindo a saber como fazê-la, apurando o instinto com o passar da vida e a força da experiência.
Poderá não lhes parecer grande coisa, esta obra, mas é a minha. Faz seguramente sentido num contexto maior, que ultrapassa a nossa limitada dimensão.
Foi a densidade dessa obra que me permitiu reconhecer os seres realmente importantes para mim, independentemente das suas máscaras, e esse acto engrossou-a, abrindo novas perspectivas para a mesma. Estamos demasiado viciados sobre o que deve e não deve ser o quê. Eu sei que a escrita palpita dentro de mim, que é uma energia a que tenho que dar mais espaço.
Mas não a usarei para me demitir da rede em que me situo. Estou atenta, alerta, a aguçar os sentidos – sobretudo os interiores – na aplicação do que já sei e, sobretudo, no levantamento de alguns dos véus que ensombram ainda a minha visão.
Eu vou encontrar o caminho, a saída do que já não se adequa à minha consciência de agora.
Mas quando aquela data final for aposta na minha existência, lembrai-vos todos que a minha obra foi acima de tudo tentar apoiar desde sempre os momentos da história da evolução da consciência no tempo em que por aqui andei. Fi-lo seguramente de forma imperfeita, mas como eu quis, ó céus, ser coerente e verdadeira. Como quis honrar o mandato do espírito e deixar que a obra me utilizasse como mero instrumento para a sua execução.
Hoje, de dentro da minha perplexidade perante a forma redutora como alguns vêm a minha obra, confirmo-vos ser esta a sua natureza e que tal facto me avaliza como Fundadora do PROJECTO Art for All, aquele que nasceu para promover a expansão da consciência através da criatividade.
MARIANA INVERNO, Notas Diárias à Sombra dos Tempos
Quadros: CATHERINE DE SAUGY
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