AO SERVIÇO DE SUA MAJESTADE
Passeio de carro pelo reino de Cornwall. Montes rolantes, neve e sol.
A rádio clássica passa a intervalos regulares o anúncio seguinte:
Se você tiver conhecimento de alguém que não tenha registado o seu negócio para fins fiscais sob o governo de Sua Majestade, queira informar-nos (nºde telefone). Não precisa de se identificar!
A voz da locutora é suave, pausada, a pronúncia das palavras perfeita.
Segue-se Debussy e o dia continua.
Fico-me silenciosa a remoer o significado do incitamento dos cidadãos a dois crimes, para mim capitais. O primeiro: denunciar o amigo, o vizinho, o familiar, o conhecido, mesmo o desconhecido. Denúncia.
O segundo: não dar a cara, uma cara velada pelo fedorento véu da cobardia, ao mexer impunemente na vida dos seus concidadãos.
Tudo ao serviço do governo de Sua Majestade.
Se eu tivesse sido formatada por um ambiente de grosseria e calão, seguramente que a minha indignação faria sair da minha boca, neste momento, o apropriado chorrilho de impropérios. Como não é o caso, escrevo esta pequena crónica na esperança de que alguém a leia e partilhe comigo a necessidade de trabalhar no despertar das consciências.
Eu nasci e cresci num país que viveu sob um regime fascista até eu ser uma jovem adulta, conheço por demais os métodos e as teias das polícias secretas. PIDE. Bufos. Medo. Denúncia e medo. Conheço a cor da desconfiança e do medo, a cor da traição.
Como é que nos nossos dias nos deixámos levar desta maneira?
Como foi que permitimos que a dormência se instalasse desta forma e que um Big Brother viciado e viciante tente controlar a nossa consciência de forma descarada?
Como é que num país dito civilizado, democrático, um país onde num ainda recente passado se defendiam os mais altos e nobres valores, podem estar a acontecer coisa destas?
O que é que eu posso fazer, contrapor a esta barbaridade?
Só disponho da palavra e ela representa, numa situação como esta, o meu único poder.
Assim, daqui incito todas as consciências despertas a denunciarem, dando a cara, que na mais conhecida estação de música clássica de Inglaterra, acontece a intervalos regulares um crime grave: servidores do governo de Sua Majestade incitam descaradamente os cidadãos à denúncia cobarde. Incito a que nos lembremos que não somos por natureza peças amorfas de uma engrenagem que pretende ditar a nossa conduta moral.
Que o nosso poder pessoal não pode, não deve ser transferido para ninguém. Emerge da nossa essência, da nossa inata capacidade de discernimento, de escolha. Saibamos estar atentos a quando permitimos ao outro (seja ele pessoa, estado, império) substituir-se à nossa própria capacidade de decidir e de actuar.
É este e apenas este o poder da minha palavra. Serve valores como a integridade, o respeito pela concidadania e a liberdade.
Esta é a minha palavra. Ninguém a poderá calar!
MARIANA INVERNO, Notas Diárias à Sombra dos Tempos
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