Janela Pessoana
Uma vez mais, a implacável lucidez de Pessoa. A alma sabe, no entanto, que tudo pode adquirir outros contornos. Resta saber à custa de quê...
A única realidade social é um indivíduo, por isso mesmo que ele é a única realidade. O conceito de sociedade é um puro conceito; o de humanidade uma simples ideia. Só o indivíduo vive, só o indivíduo pensa e sente. Só por metáfora ou em linguagem translata se pode aludir ao pensamento ou ao sentimento de uma colectividade. Dizer que Portugal pensa, ou que a humanidade sente é tão razoável como dizer que Portugal se penteia ou que a humanidade se assoa.
(...) Sendo o indivíduo a única realidade social, é o egoísmo a única qualidade real, embora, por disfarces vários e artíficios diversos se construíssem, no decurso da evolução social (não digo do progresso, porque não sei - nem ninguém sabe - se existe progresso) sentimentos altruístas, afinamentos dos instintos.
Para que o indivíduo possa ter uma vida social que lhe seja um elemento de desenvolvimento, ou, em outras palavras, para que a sociedade seja um ambiente favorável ao desenvolvimento do indivíduo, é forçoso que se faça assentar essa sociedade num conceito egoísta.
Assim se formam naturalmente nações. A nação é o segundo elemento social primário. Os homens não se agrupam fraternitariamente senão por oposição. Sempre nos unimos para nos opormos. Isto é, aliás, um princípio lógico: definir é limitar.
Assim como o egoísmo e a vaidade são as qualidades determinantes da vida humana - pois o homem só deveras age para seu proveito ou para suplantar os outros, sendo a guerra a essência de toda a vida (o que já Heráclito havia dito) - assim o egoísmo e a vaidade são as qualidades determinantes dos egoísmos espontâneos chamados nações.
FERNANDO PESSOA, Textos Filosóficos
1915
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