ORDEM NASCENTE

Textos poéticos e filosóficos sobre a ordem nascente
A ordem nascente é ainda elusiva e periclitante. São muitos os profetas apocalípticos que auguram o fim dos tempos, e assim alimentam o medo no ser humano, facto que não pode bem servir a humanidade. Mas há, sem dúvida, crescentes indícios, vestígios, sinais que auguram o fim de um tempo, o ruir das estruturas... MARIANA INVERNO

20 dezembro 2005

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SOHAM

Tudo passa. Tudo. A alegria de ontem, a dor do momento actual.
Tudo, tudo passa.
Tudo é vibração e a vibração move-se em conexão com a enorme rede que tudo liga. Assim, todas as coisas que acontecem têm natureza efémera. Passageira.
Corpos, amores, acontecimentos, pensamentos, a emoção e o medo, a trama humana…tudo nos parece tão importante e, contudo, num abrir e fechar de olhos, tudo se dissolve em nada. Quando muito, resta a vaga memória…
Pergunto-me hoje que realidade tiveram todas as coisas por mim vividas, mesmo as mais intensas, se não passaram de uma ilusão, um sonho qualquer – sonhos a quererem manifestar-se em formas, actos, plataformas de permanência e confiança…?
A dor acaba por nos despertar se não nos fixarmos na perspectiva egóica. Entre lágrimas e dolorosos estados de alma, há um espaço em nós onde nada existe a não ser a nossa própria consciência de ser.
Soham. Eu sou. Repito isto, primeiro e muitas vezes, entre lágrimas, depois o “eu ser” ganha força, predominância sobre a dor. Elimina-a temporariamente.
Respiro fundo. Concentro-me na qualidade mesma da respiração. Há uma quietude que acabará por se instalar mais definitivamente, estou em crer. Um dimensão de paz, subtil e doce como uma pena branca transportada com leveza pelo azul do ar, um arejar da cadeia enlouquecida do pensamento.
Desistir do resultado tangível, nunca do propósito anímico. Desistir do pessoal sem deixar de sorrir a quem comigo se cruza. Não nos apegarmos a nada nem a ninguém. Tudo é impermanente, tudo se pode dissolver menos este saber que EU SOU, que na minha respiração vive o momento que passa e que a qualidade daquela o determina. Sinto-me estóica, quase heróica ao mover-me nesta direcção. (Ainda o ego a querer tomar conta de mim). Não sou precisamente ninguém mais do que todos e cada um dos que sofrem o fel da dor infinita, pungente, amarga. Sou mais um dos muitos a tentar “salvar a pele da alma”, a agarrar-se ao que pode. E não há nada para me agarrar. Só eu mesma, só o EU SOU. Só o concentrar-me na respiração pausada a inspirar ouro e a expirar os venenos vários – decepção, ansiedade, tristeza, desgosto, perda, solidão, amargura, et cetera, et cetera.
Não posso perder-me nas minhas acções, nos meus elos. A minha única possibilidade de existência real reside apenas em SER no momento que passa, com esta caixa respiratória auto-consciente, toda-presente, aquietante.
Fora disto não há nada. É tudo um jogo. Que eu já não quero ganhar. Não quero ganhar nada. Só SER. Na incerteza do que acontecerá no exterior, na insegurança de não ter pilares de apoio, redes de fundo. Dou-me conta de que não é o que faço mas como o faço que estabelece a diferença fundamental entre ser e não ser.
Se há uma inteligência sincronística e justa subjacente a tudo quanto existe, então o meu propósito será reconhecido como sincero e eu serei ajudada, se não pelo amor de outros humanos, então seguramente pela essência da Vida a dar força a si mesma.


MARIANA INVERNO, Textos da Travessia

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