ORDEM NASCENTE

Textos poéticos e filosóficos sobre a ordem nascente
A ordem nascente é ainda elusiva e periclitante. São muitos os profetas apocalípticos que auguram o fim dos tempos, e assim alimentam o medo no ser humano, facto que não pode bem servir a humanidade. Mas há, sem dúvida, crescentes indícios, vestígios, sinais que auguram o fim de um tempo, o ruir das estruturas... MARIANA INVERNO

19 setembro 2004

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O PONTO DA VIDA, O PONTO DO AMOR


Se é certo que estamos num momento de viragem no que se refere à estrutura das sociedades e isso se reflecte com peso nos padrões de comportamento, que ensaiam a experimentação na busca do inovador, também é verdade que isso serve muitas vezes de pretexto para a desresponsabilização das pessoas perante a sua caminhada passada. Como é óbvio, inspira-me sobremaneira o novo, o diferente, sobretudo se corresponde a saltos interiores, mas não confundo esse facto com o que certas organizações ou personagens ditas da Nova Era que por aí proliferam (e, em muitos casos, prosperam) procuram semear.

Num aproveitamento infame do vazio das pessoas, da sua frustração e perda crescente de referenciais – próprios de uma mudança geral de paradigma – logram convencer os espíiritos mais fragilizados de que há que cortar tudo quanto nos prende ao passado (leia-se: nos é inconveniente) e fixarmo-nos nas grandes revelações (essas sim, “legítimas”!) que uma multidão de cartomantes, astrólogos, terapeutas e videntes de todas as origens nos comunicam na ambiência supostamente serena dos seus locais de trabalho.
Exactamente porque tenho uma consciência cada vez mais nítida de que se vai instalando uma nova ordem de valores, justamente porque luto no dia a dia – sobretudo em mim própria – para que nessa mudança prevaleçam sobretudo os valores espirituais, é que sinto este impulso de denúncia do pseudo-espiritualismo e, outro dia, desalentada e triste, escrevi, entre lágrimas, o texto seguinte.




Não subscrevo o abandono, eu que, como a loba, sempre desbravei novos caminhos, por instinto e por opção...

Não ponho e disponho das almas que a minha alma achou e que à minha trouxeram o alívio da memória primordial...

Não me conto fábulas - “a caridade começa em casa”, diz o povo...

Pois, irmão, não me foi dado abrir o teu coração para depois saltar para outra margem, em busca de novas gratificações e deixar-te suspenso num vazio qualquer.

Não confundamos “alhos com bogalhos” – é por demais fácil limpar o dossier
rasgar todas as folhas e começar de novo, na enganosa alvura do papel em branco.

Não me conto fábulas. Sou tudo o que sou, o que senti, amei, corri, cantei e chorei. Se te largo, irmão, é a mim que eu largo. Se te amo, irmão, é a mim que eu amo.

Se corto, rasgo, destruo, limpo o registo, é a mim que amputo. Em vão.

Falso recomeço o que ignora a fala íntima da alma e se conta histórias e se perde uma e outra vez , nos caminhos da realidade momentaneamente conveniente.

Chega sempre a hora do frente a frente com um nível único do ser aonde muitos poucos, além de nós mesmos, têm acesso.
É na hora crua desse balanço, despidas todas as máscaras, ultrapassada a ilusão de que somos outra coisa senão a coisa que somos, sem holofotes nem acessórios, sem efeitos especiais, que a alma chora baixinho, saudosa dessas outras que a puderam tocar num ponto nevrálgico, oculto e misterioso, inacessível para quase todos. Chamo a isso o ponto da Vida, o ponto do Amor. A esse eco raro devemos a nossa total lealdade.

Mentira que possamos amar todos sem excepção, que sejamos "eternamente apaixonáveis".
Mentira que as sombras se possam descartar, sem que as penetremos com as garras da coragem, sem que as assumamos através da dor e assim as transcendamos.
Mentira que se nos desfizermos das fotos, das cartas, dos incómodos souvenirs, a mágoa desapareça, como por encanto. Há tempos que os passes mágicos deixaram de me interessar, pois só tocam a superfície da vida. Lá nos fundos do ser, vai-se tudo acumulando e, mais cedo ou mais tarde...


Sei muito poucas coisas. Mas já vivi o bastante para resguardar com zelo os meus tesouros internos. Entre muito poucos outros, destaca-se o ponto da Vida, o ponto do Amor.


MARIANA INVERNO, Notas Diárias à Sombra dos Tempos

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