O PODER DO RISO ENTRE MULHERES
Dedico este artigo à minha amiga Rosa Leonor e ao seu corajoso site
MULHERES & DEUSAS.
A DEUSA DO RISO
G. LEOPARDI(1798-1837)
Sou por natureza muito séria, atenta ao lado mais profundo das coisas.
Em consequência e por compensação, tocam-me sempre de forma especial as pessoas que me fazem rir pelo efeito refrescante e regenerador que o riso espontâneo exerce sobre quem o experimenta.
Guardo assim um carinho muito especial pelo mito de Baubo, essa deusa menor da Antiguidade Clássica, hoje praticamente desaparecida. Não será alheio a isso o facto de os patriarcas desconfiaram sistematicamente de quem se ri, principalmente se for mulher. É aliás conhecido o efeito inquietante que, em geral, um grupo de mulheres à conversa e em risota entre si, tem sobre os homens. Estudiosos do rir têm vindo a sugerir a relação entre o mesmo, a sexualidade feminina e a recuperação do equilíbrio, pois o rir entre mulheres representaria o lado oculto da sua sexualidade.
O mito de Baubo tem paralelo com o de Uzume, a deusa japonesa da alegria e da dança, presente em primeiro plano no mito mais antigo do Japão. Essencialmente, o elo entre ambas as divindades resulta de as duas causarem, através do riso, um efeito balsâmico sobre situações desesperadas.
Na sequência do rapto de sua filha Perséfone por Hades com a conivência de Zeus, seu pai, Demeter abandonou desesperada o Olimpo.
Disfarçada de anciã, percorreu a Terra em busca da filha desaparecida e, nesse processo, apresentou-se a Metamira como candidata a ama do filho que esta acabara de dar à luz. A deusa estava possuída, porém, de uma dor sem fim e nem a visão do bebé conseguiu retirá-la do seu mundo de tristeza e silêncio. Limitou-se a aceitar a cadeira que a criada Baubo lhe ofereceu mas recusou-se a aceitar qualquer alimento.
Foi justamente Baubo quem, com as suas brincadeiras e graças aparentemente obscenas, conseguiu arrancar Demeter do pesar profundo em que se afundara. Ao dançar comicamente diante da deusa, Baubo levantou a certo ponto as saias e mostrou-lhe a vulva num gesto brincalhão. A enlutada Demeter quebrou o silêncio e começou a rir. Riram muito, riram juntas e assim começou o processo curativo da frustrada mãe.
O gesto de Baubo, indecente na aparência, reporta-nos a uma era matriarcal remota em que a zona púbica da deusa simbolizava a porta sagrada e a origem da vida, sendo o triângulo invertido um símbolo sagrado, como se sabe. Ao recordar a Demeter de forma brincalhona o seu poder como mulher, Baubo estimulou-a à recuperação de forças para prosseguir em busca da filha que eventualmente recuperou. Este comportamento ancestral e perdido na memória dos tempos foi incluído em muitas representações artísticas desde tempos imemoriais até à Idade Média e e era parte integrante dos Mistérios que se celebravam em Eleusis, durante dois mil anos e até à destruição do santuário, no século IV da era Cristã.
Num tempo decadente e automatizado como o nosso e em face do uso e abuso obsceno da imagem feminina, torna-se especialmente importante resgatar e difundir este mito que, nas palavras de Jean Shinoda Bolen, representa “a recordação vaga e subvalorizada de que as imagens da sexualidade e da fertilidade da mulher são sagradas e não lascivas.”
MARIANA INVERNO
Livros recomendados:
Jean Shinoda Bolen, Goddesses in Older Women, Quill, 2002
Winifred Lubell, The Metamorphosis of Baubo: Myths of Woman’s Sexual Energy, Vanderbilt University Press, 1994
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