Ai!
Andam dias estranhos por aqui. As pessoas parecem estonteadas, desvairadas, insanas...
Morre-se e adoece-se mais do que o normal, eu sinto. Temos todos dificuldades de ordem vária, o clima vai incerto.
Adiam-se viagens, parte-se inesperadamente. Desaba tudo e num segundo está tudo salvo. Tanta coisa a acontecer que nem a superfície dos dias se arranha, a alma inquieta – o que é que nos escapa, quem foi que disse aquelas coisas tão importantes de que já ninguém se lembra?
Temos demasiadas lágrimas na reserva e falta de tempo para as verter...
Uma destas manhãs, inundaram-me memórias vindas da minha infância, aninhada algures na Costa do Castelo dessa Lisboa cuja magia perdura mesmo em tempos áridos como os de agora. Foram ondas sucessivas de palavras quentes, esféricas como um princípio de vida – meia dúzia de palavras de cada vez e era um quadro, um poético vislumbre, um sopro do tempo, uma chave... Quiz registá-las, gravá-las com seiva, com alma, com o sangue dos dias no meu caderno prenho de sonhos, entumecido de beleza e de dores! Mas não havia tempo. Chamavam-me as mil vozes da aparente concórdia diária, as malditas vozes, racionais, lógicas, inescapáveis, essas vozes que me dissociam de mim. E fiquei com mais esta dívida, mais esta dor dorzinha auto-infligida porque é preciso ganhar o pão nosso de cada dia.
Quando me sinto perdida, enrolo-me em poesia.
Refugio-me nela, falo com os meus poetas, entendedores como ninguém do que me consome. Desta vez, revisitei Cecília Meireles, chorei um pouco - Nesse lugar nos encontraremos, Poeta – e, depois, disse-me outra vez como sou privilegiada e que o mínimo que devo à vida e aos outros é o meu alargado sorriso.
Poeta, certamente nos encontraremos nesse lugar.
E que sejamos apenas a humilde, a humilhada luz,
que tanto defenderemos
desse vento, dessa noite, desse peso brutal do mundo em que vivemos.
Ai!
MARIANA INVERNO, Notas Diárias à Sombra dos Tempos
0 Comments:
Enviar um comentário
<< Home