AS T-SHIRTS DA CLARA
Chegada quase ao termo de uma física e emocionalmente extenuante viagem a Londres, decidi no último dia dedicar algum tempo a escolher umas roupas para a minha afilhada que tem seis anos e se chama Clara pela luz que trouxe aos sonhos de sua mãe.
Em nome do carinho que sinto pela criança lá me desloquei, apesar do meu cansaço, ao grande armazém londrino em busca de algumas peças estivais que servissem à pequenina.
Na secção de crianças, ao apreciar as T shirts à venda, andei de choque em choque. Apostas àquelas blusitas de cor verde alface, rosa, laranja berrante, preto ou azul celeste apareceram dante dos meus olhos estarrecidos as mais infames mensagens. I AM THE GIRL WHO HAS EVERYTHING! afirmava uma frase laranja sobre um fundo verde, I ONLY WANT WHAT I CANNOT HAVE representava uma opção castanha sobre a blusa amarela, I DON’T NEED THIS! cuspia o seu enfado em inocente rosa sobre um seráfico azul celeste.
Senti-me tão revoltada que fui falar com uma das empregadas na caixa. Era uma rapariga de cor, jovem, muito bonita, de olhar doce. Escutou a minha ira em silêncio, esboçou um leve sorriso e disse em voz baixa que ali só vendiam o que o mercado pedia. Perguntei-lhe como reagiam as outras pessoas, sobretudo as mulheres-mães, perante um descalabro destes. Senti-lhe o embaraço quando me respondeu que eu fora a primeira pessoa a comentar as frases das blusitas, que se vendiam muito bem.
Falei, falei muito depois. De como sinto uma aflição enorme no coração perante a irresponsabilidade que grassa na nossa sociedade, o facto de nos portarmos como cordeiros tontos levados para onde decidem que temos de ir, sem nada questionarmos, sem pararmos um momento para pensar que estamos a fabricar monstros pela nossa alegada falta de tempo para o que é essencial. Talvez nos tenhamos até já esquecido do que é essencial.
Disse alto e bom som quão relevante, quão urgente é voltar a cultivar a inocência das crianças, criar-lhes sentido de responsabilidade e integrá-las num espírito comunitário, onde a superioridade (se assim se pode chamar) só pode advir da consciência que se tenha do sofrimento alheio. Onde se respeite o alheio como se nosso fora e o sentido de dádiva e de partilha seja uma constante. Tudo isto, eu digo à minha Clara quando posso. Disse-o aos meus filhos, no tempo próprio, com os melhores resultado possíveis.
Jamais lhes poderia impingir uma destas T-shirts, por mais bonitas que pudessem ser. Conheço a força da palavra. Os especialistas em psicologia humana, também.
Embora estivesse cheia de mulheres, nem uma voz se ergueu para me apoiar naquela loja londrina. Suspeito que me olharam como se fosse meia louca, algo obcecada com ideias puritanas, pouco adequadas ao tumulto dos tempos.
Mas mesmo que a minha seja a última das vozes, fá-la-ei sempre soar em nome daquilo em que acredito. Pode ser que, de vez em quando, haja algum eco.
MARIANA INVERNO, Notas Diárias à Sombra dos Tempos
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