ORDEM NASCENTE

Textos poéticos e filosóficos sobre a ordem nascente
A ordem nascente é ainda elusiva e periclitante. São muitos os profetas apocalípticos que auguram o fim dos tempos, e assim alimentam o medo no ser humano, facto que não pode bem servir a humanidade. Mas há, sem dúvida, crescentes indícios, vestígios, sinais que auguram o fim de um tempo, o ruir das estruturas... MARIANA INVERNO

08 julho 2004

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AS CONTAS QUE CONTAM

Sou. Muito diferente dos outros. Assim me dizem familiares, amigos, inimigos. Até a cara das pessoas desconhecidas na rua me transmite, muitas vezes, essa estranheza – admiração – reprovação, face ao meu ser.
Diz-mo o espelho e o facto de ter de levar quase sempre com a mesma frase introdutória, Interessante, conheço-a de algum lado…
Quem ou o que sou, afinal?
Hesse disse não haver qualquer realidade fora de nós próprios. Percebo e até concordo. A questão reside sobretudo na consciência que possamos ter do que está em nós, daquilo de que somos portadores, do que arrastamos todos os dias, ligado ao nosso veículo físico, por este estado tão desalinhado a que chamamos a vida no planeta Terra.
Outro dia, estive com uma mulher pequena, apagada, insegura. Quase feia. E, no entanto, houve uns inesperados momentos de “contacto” que me aproximaram alucinatoriamente dela. Não das palavras, que reflectiam a sua aparência, mas de um aveludado doce no olhar compadecido hesitante em mostrar-se. De um tom qualquer na voz, uma preocupação com o alheio, uma vontade de ser despojada para que “as contas que contam” possam bater certo.
Penso nela, às vezes. Gostaria de a rever.
Talvez que a sua diferença e a minha diferença sejam uma e a mesma coisa. Aparentemente nos antípodas uma da outra, andamos ambas afinal disfarçadas daquilo que parecemos ser aos olhos dos outros, de tabiques levantados sobre a essência. Projectam-se taipais de sombra sob a forma de circunstâncias e características externas pessoais. Tudo ilusão.
O que foi que me fez parar para olhar de novo esta mulher? A sua inépcia, as contradições, o discurso emaranhado, desinteressante? A compaixão no olhar escondido, avesso à observação dos outros? Ou será que o “contacto” se fez ao perceber que ela também sabia que há um tipo de contas muito arredado daquilo que a
lei e os empenhos tribais ditam. São, ambas sabemos, “as contas que contam” – esse impulso do coração a querer descodificar a aparência das coisas, a lembrar-nos uma face outra de tudo para além dos direitos e das legalidades.
A mim, quando assim ajo, acusam-me em geral de ser boa demais, de me deixar manipular pelos outros, quase sempre tão sabidinhos. Ou, então, de ser ou uma santa ou uma fraude.
A ela…à superfície tão diferente de mim, deve acabar por acontecer qualquer coisa de correspondente.
Assim, a realidade que está dentro de cada uma de nós não poderá ser tão desigual.
Sugiro-me procurar revê-la. A ver se me entendo melhor.
E às”contas que contam”...


MARIANA INVERNO, Notas Diárias à Sombra dos Tempos
Escultura: EVA ANTONINI

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